awareness


Darfur

um post não me vai fazer sentir melhor. não me quero sentir melhor. que ninguém se sinta melhor só porque não se calou.

no deserto destes dias não podemos saber a distância entre a indiferença e uma meia dúzia de palavras.

porque escrevemos, então?


o que me perturba é ainda o modo como o planeta se está nas tintas para nós.
as árvores vão continuar a dar flor e fruto indiferentes às nossas tragédias.
e a erva vai crescer e alimentar-se dos animais que morreram.


"Antigamente, eu apenas conhecia fadigas amedrontadoras.

Antigamente, quando?

(...)

Ou saltitarão os pintassilgos efectivamente para a águia, lá no alto - que as pessoas, como desfastio, desejam ver em voo picado?"

Peter Handke, Para Uma Abordagem da Fadiga

em busca do dia conseguido

"Todos os que conheço viveram já um dia conseguido, em regra até muitos. A uns bastava que o dia não se arrastasse. Outros porventura dizem: "Estar na ponte, sob o céu. De manhã ter rido com as crianças, olhar. Nada de especial, olhar traz felicidade." E, para um terceiro ainda, significara já a rua de subúrbio, que ele tinha acabado de atravessar, com os pingos de chuva que, lá fora, pendiam da chave gigante da serralharia, com o fervilhar do bambu no jardim fronteiro da casa, com a trindade de cascas de tangerina, uvas, batatas descascadas cá fora sobre o parapeito da cozinha, com o táxi que estava de novo estacionado à porta de casa do motorista um tal "dia conseguido". E, para aquele padre cuja palavra preferida era "nostalgia" um dia podia ser considerado conseguido no momento em que ele ouvia uma voz amável. E, após uma hora em que nada acontecera, exceptuando o facto de um pássaro ter rodopiado em torno de um ramo, de uma bola branca estar aninhada num arbusto e de alunos estarem sentados ao sol na plataforma de comboios, não tinha ele próprio também dado repetidamente consigo a pensar: "Tudo isto constituiu agora já o dia inteiro"? E não lhe acontecia frequentemente, quando à noite evocava - sim, era de uma espécie de evocação que se trtava - o dia findo, ocorrenrem-lhe, em regra, como nomes para ele as coisas ou os lugares somente de um instante: "foi o dia em que o homem com o carrinho de bebé deu a curva por cima dos montes de folhas", "foi o dia em que as notas do jardineiro estavam misturadas com palhas e folhas", "foi o dia do café vazio, onde a luz se alterou com o zunido proveniente do balcão frigorífico..." Então porque não se contentar com cada hora conseguida? Porque não simplificar, elevando o instante a dia?"

Peter Handke, in Ensaio Sobre o Dia Conseguido

razões para não escrever

não gosto do que escreve aqui aquele que escreve quando se aproxima demasiado de mim porque é perigoso e deixa uma espécie de rumor branco de flores morrendo devagar não sei explicar muito bem isto das palavras de não saber dizer nunca se aprende mas também não se pode escrever quando a distância cresce e transforma as palavras em coisas falsas ou pior desonestas sobretudo porque existe sempre o risco que me leias quando estamos tristes ou cansados e menos disponíveis para o mundo os outros as palavras


sent by//outro

superpoppe (limão - vazio formal)

apeio-me desse navio que não navega e desço do cais pela calçada em direcção à água e encontro alguns amigos quase perdidos que me levam à porta de casa da insónia copos para lavar com superpoppe detergente limão antibacteriano não me deixes sair da cama para escrever abraça-me levanto-me e escrevo à espera que o sono se liberte dos comprimidos estou tão triste que é feito das minhas razões/condições objectivas para a felicidade? é tudo tão frágil desculpem-me mas os poemas não se misturam é uma questão de respeito pela poesia e porque depois podem demorar demasiado tempo a sair da roupa as nódoas dos poemas mal-ditos gosto mais de trazer para casa os poemas nas mãos inteiros limpos entre nós e as palavras há ainda palavras palavras palavras

memória do poema

há palavras, livros inteiros, assim: perturbam a distância que nos separa do mundo.
[essa espessura tão instável, frágil]

pegas no livro, deitas-te devagar na cama e começas a ler.

[ah! o poder das tuas mãos sobre a página]

(nota para não escrever)

"Se o conhecimento é uma forma de escrita, mesmo sem palavras, uma respiração calada, a narrativa que o silêncio faz de si mesmo, então não se deve escrever, nem mesmo admitindo que fazê-lo seria o reconhecimento do conhecimento. Pode escrever-se acerca do silêncio, porque é um modo de alcançá-lo, embora impertinente. Pode também escrever-se por asfixia, porque essa não é maneira de morrer. Pode escrever-se ainda por ilusão criminal: às vezes imagina-se que uma palavra conseguirá atingir mortalmente o mundo. A alegria de um assassinato enorme é legítima, se embebeda o espírito, libertando-o da melancolia da fraternidade universal. Mas se apesar de tudo se escrever, escreva-se sempre para estar só. (...)"

Herberto Helder, in Photomaton & Vox

ce qu'il y a avant


"La salle noire c'est ce qu'il y a avant le film, l'image. Et le noir dont je parle dans La Vie Matérielle, c'est celui qui est avant l'écriture. On ne sait jamais exactement ce qu'on va trouver après. On écrit, on écrit encore, puis on relit, et il faut jetter parce que n'est pas ça qui etait dans le noir. On s'est trompé. Alors on recommence.
  
Marguerite Duras, Cahiers du Cinéma, nº 426, Dec. 89


sou Ulisses e fico em casa

"Ele pensou: Sou Ulisses e fico em casa. Tive de suportar muitas tribulações. Desta vez foi Penélope que podia contar com a minha lealdade, enquanto viajava lá por fora em busca dos vestígios da sua juventude perdida. E eu tinha de me defender de pessoas enfadonhas que a minha solidão atraía em grande número, como se fosse uma riqueza ou um oráculo."
 
Botho Strauss, in Fragmentos da Incompreensão



"Serias capaz de deixar tudo e recomeçar uma nova vida?
Escolher uma única coisa e ser-lhe fiel?

Conseguir transformá-la na razão da tua vida?
Uma coisa que englobe tudo, porque é a tua fidelidade que a torna infinita. Serias capaz?"

 
in 8 1/2, Federico Fellini



[Frida Kahlo, The Broken Column 1944]

escrever é perigoso

um instante, uma falha, um erro breve pelo qual sabemos algumas palavras.
passam-nos pelos dedos as palavras que poderiam ter dito a chave que suspende o mundo.

não escrever.

pela energia das palavras

"As montanhas deslocam-se pela energia das palavras, aparecem pessoas, animais, corolas, sítios negros, e os astros crispados, pela energia das palavras, cria-se o silêncio pela energia das palavras.

Escrever é perigoso."

Herberto Helder, in Photomaton & Vox

nenhuma explicação

se eu soubesse as palavras escrevia aqui as palavras que haveriam de te fazer ficar escrever um pouco mais por favor. nenhum dia é um dia certo para um adeus.

dissolução

do Lat. dissolutione

s. f.,
fenómeno no qual um corpo sólido, líquido ou gasoso, posto em contacto com um líquido (dissolvente) desaparece na massa deste líquido, formando um conjunto mais ou menos homogéneo;
decomposição, desagregação de moléculas;
extinção de contrato ou sociedade;

fig.,
perversão de costumes;
devassidão.



[de dlpo, Texto Editora]

a dissolução do presidente



eleições (presidenciais) antecipadas, já!

motor de busca

(blog perdido)
alguém me ajuda e encontrar o companheiro secreto?

¿Qué vale lo que cante ?

[depois da chuva]
porque se torna insuportável a falta de espaço, saímos para a rua com passos receosos.
as pessoas estão caladas. têm o silêncio das trovoadas desenhado nos olhares.
saímos para a rua com a alma limpa. tão limpa que nos cai das mãos.

como é que se segura uma alma que cai?
"Clouds: forms-contents, becoming, floating worlds, vastness and evanescence, moving permanence. And, before all - and at the very end - a certain relationship with the sky."

in Clouds Magazine


[Kiarostami, Silk Road]

As nuvens, às vezes travam grandes batalhas, às vezes dançam e às vezes não fazem nada.

Lhasa de Sela
Tu me tues, tu me fais du bien.

M. Duras

sanatórios

"- Não preciso de remédios - disse eu. - Sei histórias tenebrosas acerca da vida. De que me servem barbitúricos?"

Herberto Helder, in Os Passos Em Volta

a impossível desesperança

acreditar que há futuro. acreditar que a alegria se há-de sobrepor mais dia menos dia ao cinismo.

filmes que eu gostava de voltar a ver

enquanto houver memória e dias claros debaixo do céu nunca as minhas mãos estarão vazias

já falta pouco



envelhecer

"Quanto mais se envelhece (...) mais se observam os lugares por onde se passa à luz da ideia de que gostaria de ficar por ali ou de que seria extremamente desagradável ficar por lá. Observam-se os lugares como se experimenta um par de sapatos."

Botho Strauss, in Rumor


Ontem, enquanto atravessava o Alentejo, não consegui deixar de pensar como seria agradável ficar por lá.

limitâncias

(Ouvi há tempos o José Mário Branco dizer que a "militância é sempre uma limitância" e não podia estar mais de acordo. Nunca consegui ser militante de coisa nenhuma e durante muito tempo pensei que se tratava de uma incapacidade minha.)

A propósito das cada vez mais frequentes referências à possibilidade de o Bloco de Esquerda poder vir a viabilizar um governo do PS queria escrever (para me comprometer) o seguinte: se isso acontecer nunca mais voto no Bloco.

palavras que aproximam?

não sei que palavras te diria se soubesses a distância exacta entre as minhas mãos escrevendo e o teu corpo dormindo no quarto é noite muito longe já e o cansaço deixa pouca clarividência

nivelar por cima

"You never know what is enough unless you know what is more than enough."

William Blake

SOMBRAS ROSAS SOMBRAS

Sob um céu estranho
sombras rosas
sombras
numa terra estranha
entre rosas e sombras
numa água estranha
a minha sombra

Ingeborg Bachmann

"quem corre por quem não gosta"... ou

"Amam-se aqueles que nos amam, ou então é-se estúpido."

Stig Dagerman, in O Vestido Vermelho

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