Tudo é sagrado!

Pasolini

Há coisas que só se vivem; ou então, se insistimos em as dizer, é necessário fazê-lo em poesia.

Pier Paolo Pasolini

Pasolini

A poesia é o que resta quando se esquece tudo da história e é tudo o que passa do imaginário para a ordem simbólica da palavra humana. Restituir à história o que não lhe pertence e ao homem o que ainda não é do homem (...)

Jean Duflot,
in Pier Paolo Pasolini - As Últimas Palavras de Um Ímpio


[Em Junho, na Costa do Castelo Filmes: Decameron, Contos de Canterbury, Salo, Mil e Uma Noites.]

dicionário do diabo

é claro que quem escreve tem o direito de fazer o que entender com os seus textos, mas não deixa de ser de certa forma uma traição o modo como o Pedro Mexia encerra (e apaga) o seu Dicionário. Assim, sem aviso, pela calada da noite.

filmes que eu gostava de voltar a ver

sleepless

as mais belas insónias da blogosfera são aqui.

ainda a memória de alice nas cidades

polaroid. a américa. as viagens. o discurso sobre as imagens.
um aparelho de televisão num quarto de hotel.

o diálogo no avião. traum?

estranhos critérios, os do esquecimento. do abandono.

e sobretudo esta certeza inabalável de ser este o filme mais importante do Wenders.
(importante para quem?)

POÉTICA

Estes quantos traços que se parecem com a sombra
(às mãos devemos também a solidão mais implacável)
talvez nem mereçam essa forma de lentidão: a leitura
escrevi-os num jardim onde patos grasnam ao frio
e folhas se despenham atrás do vento

Sobre a terra sem nenhum rumor
um verso é sempre tão pouco
em redor do que se pode observar
tenho medo pois de repente
a tua respiração ficou demasiado perto
da essência instável, dissonante

E isso é tudo o que nos resta

José Tolentino Mendonça, in De Igual para Igual
Assírio & Alvim, 2001

o sangue

querias falar dessa espécie de sangue que são as palavras circulando.

e depois ficaste a pensar que as imagens também são. todas as coisas que partilhamos com os outros. com os amigos.

sangue. família.
os amigos são a família que escolhemos. outro sangue do nosso sangue.

como no filme do pedro costa.

nómada

[...] os nómadas, em sentido geográfico, não são migrantes nem viajantes mas, pelo contrário, aqueles que não se mexem, aqueles que se ligam à estepe, imóveis de grande passo, seguindo uma linha de fuga no mesmo sítio [...]
Gilles Deleuze, Diálogos

eu, que nunca vivi muito tempo afastado mais do que dez quilómetros do local onde nasci, sempre me senti um nómada.
estranho isto de encontrar as palavras que nos explicam o que sempre soubémos, sem o saber.

a imobilidade permite a máxima velocidade.




os triângulos

É preciso multiplicar os lados, quebrar todo e qualquer círculo em benefício dos polígonos.

Gilles Deleuze, Diálogos

alice nas cidades

o modo como se adivinham aqui os próximos filmes de Wenders. sobretudo esse fabuloso Paris Texas.

alice nas cidades - fragmento # 1

o jogo das palavras. traum. traum não serve; só coisas que existem.

filmes que eu gostava de voltar a ver



proposta de exercício: escrever sobre as ruínas da memória de um filme.
Não gosto tanto
de livros
como Mallarmé
parece que gostava
eu não sou um livro
e quando me dizem
gosto muito dos seus livros
gostava de poder dizer
como o poeta Cesariny
olha
eu gostava
é que tu gostasses de mim
os livros não são feitos
de carne e osso
e quando tenho
vontade de chorar
abrir um livro
não me chega
preciso de um abraço
mas graças a Deus
o mundo não é um livro
e o acaso não existe
no entanto gosto muito
de livros
e acredito na Ressurreição
dos livros
e acredito que no Céu
haja bibliotecas
e se possa ler e escrever

Adília Lopes, in Florbela Espanca Espanca
Escrever bem
ou menos bem
não importa
importa
a porta
(a cona
o pão
para a boca)
o resto
são cantigas
de amigo

Adília Lopes, in Sete Rios Entre Campos

I'll drink to that!

filmes que eu gostava de voltar a ver


sugestão para a galeria da Inês

simples?

ensaio, tentativa, erro. traçar uma linha de fuga algures. dualidades.
como escrever a palavra, essa mot juste que abre a linha de fuga (e que nos haveria de libertar da necessidade)?

América

Michael Moore: "Americans regardless of their political stripe ... don't like to be told they can't see something."

Emily Watson, no papel da protagonista, excede-se de tal forma que a expressão "estado de graça" pecaria por tibieza. "Breaking the Waves" é ao mesmo tempo manifesto e tributo à liberdade de filmar, e raras vezes se terá visto prova tão eloquente de que a premeditação não é, nem pode ser, inimiga da vontade de criar. Cada plano desta obra-prima arrebatadora fala-nos de cinema, e traz consigo a sua ideia de mundo.
Alexandre Andrade, 1bsk, Janeiro 2004

breaking the waves

respirar o mesmo ar

A nossa única única importância é que podemos calarmo-nos. Escutar. Fazer disso fala. Embora, dizes e tens mais uma vez razão, é terrível escutar o mundo. O que fazer perante todas estas mortes civis? Vamos manter o sorriso, a esperança nos amanhãs quando a besta é esta alarvidade que ri no espelho que me acorda? Não há como fugir a esta evidência, meus caros amigos. Aquelas bestas que mataram nestas terríveis caçadas dos tempos modernos (chamas a isto moderno, imbecil?) éramos nós, não há como negá-lo. Eram por nossa causa, era para manter a circulação nas artérias e nas vias respiratórias das nossas cidades que eles mataram. Sim, podia ser de outra maneira, de outro modo, d'une autre façon d'être. Mas não foi. Agora só há um caminho. Ou paramos nós antecipadamente as nossas cidades ou seremos tão odientos, tão pouco civis que a nossa sobrevivência se tornará naquilo que estamos a fazer no Médio Oriente: uma questão de retórica.
Joaquim Paulo Nogueira, in Respirar o mesmo Ar, 20/05/2004


Não me esqueço daquele último texto no DJ Jovem; demorei anos a compreendê-lo completamente. Às vezes (demasiadas vezes) a única arma que nos resta é o direito de nos calarmos. É o último poder dos que estão condenados. E é preciso exercê-lo. Mesmo assim.

Clarice Lispector,
a senhora não devia
ter-se esquecido
de dar de comer aos peixes
andar entretida
a escrever um texto
não é desculpa
entre um peixe vivo
e um texto
escolhe-se sempre o peixe
vão-se os textos
fiquem os peixes
como disse Santo António
aos textos

Adília Lopes, in Obra, Ed. Mariposa Azual 2000

esquecimento

o arquitecto escreveu:
Os blogs não morrem. São abandonados como um caderno que se deixa na areia de uma praia para que alguém o descubra.

quem comanda o vento? os critérios do esquecimento são produto do acaso?

A forma do Céu e sua consequência na determinação das associações e comunicações celestiais

"Mas porque o homem, com as maldades da sua vontade e as consequentes falsidades do seu coração, fez desaparecer de si mesmo a imagem do Céu, substituindo-a pela imagem do Inferno, cegou a sua alma no momento do seu nascimento. Esta é a razão pela qual o homem nasce na mais absoluta ignorância, ao contrário de todos os outros animais que nascem inocentes."

Emanuel Swedenborg, Do Inferno, do Céu e dos Anjos, ed. Pergaminho 1994

pormenores (1)

em stalker no bar; a lâmpada fluorescente que nunca consegue acender.

triângulos

ciência, arte, religião. em stalker ensaiam-se alguns movimentos de convergência.
ABC=A'B'C'?
onde fica o centro geométrico desse triângulo de vértices em movimento?

stalker


Que se cumpra o que foi idealizado. Que acreditem. Que se riam das suas paixões. Porque o que consideram paixão, na realidade não é energia espiritual, mas apenas uma fricção entre a alma e o mundo externo. O mais importante é que acreditem e se tornem indefesos como crianças, porque a fraqueza é grande, enquanto a força é fútil. Quando uma pessoa nasce é fraca e flexível; quando morre, é forte e dura. A dureza e a força são acompanhantes da morte. Flexibilidade e fraqueza são a frescura do ser. Por isso, quem se torna duro não vencerá. in Stalker de Andrei Tarkovsky

Leonora Carrington



Si les jeunes me disent maintenant qui j'ai l'Esprit jeune je m'offense -
J'ai l'ESPRIT VIEILLE
Tachez de comprendre ça -

the impossible papers

Regresso com alguma precaução e este texto extraordinário que é En Bas de Leonora Carrington.
Talvez também por causa de Sylvia Plath.
(Os critérios da memória são insondáveis; a ordem, as ligações e sobretudo o esquecimento "selectivo".)

Regresso ao texto, à crueza das palavras.

Jean Schuster numa pequena nota prévia escreve:
"Durante muito tempo a loucura pareceu inefável. Os seus testemunhos gráficos ou literários não a descreviam, mas forneciam os resultados duma hiperestesia específica do naufrágio da razão. Para forçar a atenção do deserto - como falar, sem ser aos urros? Como dizer o delírio sem nos perdermos no grito que o diz? Os maiores, Nerval, Artaud, não foram capazes. O seu génio está na queda sem fim, para lá do abismo físico.
A narrativa de Leonora Carrington, En Bas, publicada em 1945 por Henri Parisot, é, sem dúvida, uma das primeiras do género. Uma narrativa começada três anos após o internamento, uma narrativa sem complacências nem desvios. O relato do comportamento psicótico pelo próprio sujeito, além de destroçar a noção de objectividade considerada como garantia científica de autenticidade, torna verosímil a hipótese dum estado mental que escape à alternativa saúde-doença."

the impossible papers

"Depois de lhe ter explicado mil vezes que só queria ver o jardim, a Asegurada acabou, finalmente, por concordar em acompanhar-me. O jardim era muito verde, apesar dos tufos de vapores azulados dos eucaliptos altos; frente a Covadonga havia um pomar de macieiras carregadas de maçãs."

Leonora Carrington, Em Baixo, Black Son Editores, Lisboa 1990

Leonora Carrington, Argument (1978)

memória


para a Cristina.

SELF-POTRAIT 1

My cats
enjoy playing
with my cockroaches

My cockroaches
enjoy eating
my potatoes

And
what about
my potatoes?


Adília Lopes, in César a César, &etc 2003

olhar a janela?


lista jardins diz

os labirintos.
os jardins do último ano em marienbad.
o jardim dos caminhos que se bifurcam.
os jardins da memória.
da infância.
o perfume das glicínias da casa onde nasci.
onde inventei os primeiros jardins.
imensos.
os meus livros.

mot juste



"Mas como teremos a certeza de achar a palavra certa? [...] Quanto mais se fala, menos significam as palavras."

reflexos da janela

"é a nossa história; um pintor que faz o retrato da sua mulher [...] queres que continue?"

em vivre sa vie o movimento das palavras navega à vista do corpo. da imagem. não se pode viver na vida sem as palavras. e no entanto todo o filme se pode conter num rosto. todas as histórias. nana, joana d’arc. as lágrimas na superfície de um rosto. como as palavras sobre a película.

comove-me o modo como as imagens se contaminam.

dentro/fora. interior/exterior. vestir/despir. som/silêncio. nada ao acaso.

é talvez por isso que se torna tão difícil escrever sobre o filme.
porque é um trabalho que já está feito no próprio filme.
e porque apesar de tudo as palavras nunca sabem dizer.

apneia

leio no 1bsk um post delicioso acerca Dos Espectadores de Cinema Que Ficam Sempre Na Sala Até Ao Fim Da Ficha Técnica.
já houve um tempo em que fui militante.
agora fico sentado porque preciso desse tempo para sair do filme. devagar.
não há momento mais mágico do que esse tempo inexistente. suspenso. em que fico a ler a ficha técnica sem verdadeiramente ler. essa espécie de parêntesis entre o filme e a vida lá fora.

depois respiro fundo e saio, corajosamente, em direcção à luz.

don't walk away, in silence

assalta-me com excessiva frequência esta pergunta: haverá ainda alguma coisa que mereça verdadeiramente ser dita?
como escrever depois do silêncio que deixaram as palavras que deveriam ter dito tudo?

estive a ouvir Ian Curtis. closer. e depois love will tear us apart.
e não se pode ouvir nada depois disto. não há nada depois de love will tear us apart.
fica só esse ruído branco sujo metálico. morto.




O álbum.

Os Meus Livros

[...] talvez eu tenha uma árvore por amante; amante da minha árvore, figura humana que eu projecto nela, cria o amor num dia melhor do que toda a beleza que eu enuncio ao escrever; ofereço-lhe este texto, com o risco de que não me compreenda. "É para si", e concluo "é para nós"; eu entendo de igual modo as árvores, e as letras que atravessam as linhas dos livros; vivemos sob a lei da refulgência da natureza que, à hora crepuscular, explica quais são as proporções entre o homem e o resto do mundo; quantas vezes este pinhal não poderá afirmar que por aqui passou um texto, elaborado entre ele e a sua árvore? [...]

Maria Gabriela Llansol

in A Phala, nº 23 Abr/Mai/Jun 1991

Os Meus Livros

Os meus livros (que não sabem que eu existo)
São tão parte de mim como este rosto
De fontes cínzeas e de cínzeos olhos
Que inutilmente busco nos espelhos
E com esta mão côncava percorro.
Não sem alguma lógica amargura
Penso que as palavras essenciais
Que me exprimem residem nessas folhas
Que não sabem quem sou, não nas que escrevi.
Melhor assim. As vozes dos mortos
Falarão de mim sempre.

Jorge Luis Borges

in A Phala, nº 23 Abr/Mai/Jun 1991
trad. José Bento
"Aumento pontualmente as páginas deste diário e esqueço as que hão-de desculpar-me dos anos que a minha sombra se demorou na terra (...). No entanto, o que hoje escrevo será uma precaução. Estas linhas permanecerão invariáveis, apesar da flutuação das minhas convicções. " (in A Invenção de Morel, Adolfo Bioy Casares, ed. Antígona, Lisboa 1984)


sabe bem. regressar a um livro. como se regressa a um lugar que amamos desde sempre.
alguns livros foram durante muito tempo a minha casa.


a doença da leitura

as mãos devagar sobre a pele do livro. como dizer esse estremecimento?
essa expectativa inquieta que antecede o momento preciso em que afastas as páginas.

há livros assim, quase sagrados, que me perturbam um pouco sempre ainda todas as vezes em que lhes pego.
apesar do todas as advertências, leio.

"Queira o céu que o leitor, tornado audaz e momentaneamente feroz à semelhança do que lê, encontre, sem se desorientar, o seu caminho abrupto e selvagem através dos lodaçais desolados destas páginas sombrias e cheias de veneno;" (Lautréamont, Cantos de Maldoror)

a doença da leitura

"[...] porque a certo momento boa parte dos livros deixaram de me interessar, tal como se começa nas drogas leves e depois se vai para as duras. Alguns livros foram deslocando quase imperceptivelmente os meus interesses. É uma experiência que, quando se é novo e se está totalmente aberto, é altamente dramática e no fundo incontrolável. Depois, boa parte da nossa vida reside em fazer algo desses efeitos iniciais que nos tornam "desadaptados" e incapazes para viver uma vida "desmaravilhada"."

José Augusto Bragança de Miranda, entrevista DNA 23/04/2004

I've got you under my blog

gosto de pensar que os blogues são apenas pequenas erupções à flor da pele de um imenso mundo subterrâneo.

(às vezes os meus emails são mais belos que os vossos posts.)

nunca ao domingo

não escrever

escrevo. é sempre mau sinal, esta coisa de escrever. as mãos à tua procura.
o subtexto já sabe, advinha. o texto por escrever.

sento-me e espero. pode ser que passe.

em escuta

a solidão reinventada

passei toda a manhã na companhia deste blogue.
não fosse o movimento estranho da leitura dos blogues (de baixo para cima) e poderia dizer que o "folheei" demoradamente como a um livro com que nos sentamos numa manhã fresca de maio.



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